21 de março de 2007

UMA COISA DE CADA VEZ - CONTO


UMA COISA DE CADA VEZ


Quando entrou no consultório do médico do hospital a primeira coisa que chamou a atenção de Luís foi a grande quantidade de diplomas que este possuía, apesar de novo na aparência ele deveria ser muito bom. Isto lhe deu um certo conforto, sua mulher já estava internada há mais de um mês e nenhum especialista fora capaz de dizer com segurança o que as dores que ela sofria queriam dizer. Era muito triste, Luisa era tão cheia de vida, apesar de quase cinqüenta anos ninguém lhe dava mais de quarenta, muita malhação e dieta fizera dela uma bela mulher. Quando saiam juntos ela chamava a atenção. Mesmo tendo quase a mesma idade ele aparentava ser bem mais velho que ela. Era com um misto de indignação e orgulho que ele percebia os olhares cobiçosos dos outros homens para sua esposa. Mas, fazer o quê? Ela era realmente muito bela... E era toda dele...
A estranha doença de Luisa começou assim que voltaram de uma viagem ao Haiti. Haviam planejado essa viagem durante muito tempo. Muitos amigos perguntaram o porquê daquele país, quem viaja sabe que o interessante de se viajar e justamente conhecer lugares que são pouco visitados, afinal, quem quer ficar com uma penca de brasileiros em Miami? Se for pra ser assim pra que sair do Brasil? Digam qualquer coisa, mas as praias haitianas valem realmente cada centavo gasto e se tratando de um país pobre como aquele cada centavo vale muito. Viagem boa e barata, se não fosse pela doença teria valido muito mais a pena.
Perdido em pensamentos quase não percebeu a entrada do médico. Nem se deu ao trabalho de cumprimentá-lo, “Então doutor, alguma novidade? Qualquer coisa pelo amor de Deus.”, falou isso percebendo, surpreso, a aflição da própria voz. “Posso ao menos falar um pouco com ela hoje? Já faz mais de uma semana que não nos deixam conversar. Só alguns minutos...”.
- Veja bem Senhor Luís, já o avisamos que sua mulher, pelas dores que está sentindo, deve permanecer sedada a maior parte do tempo. – Falou de forma bem impessoal o jovem médico e continuou. – Como não fazemos a menor idéia do que ela tem só falta apelarmos para uma tomografia, note que no corpo ela não tem nada. Nada físico. Ela está em ótimas condições, existem pessoas que são suscetíveis a doenças psicossomáticas, este pode ser o caso de Dona Luísa. A dor está na cabeça dela. Se for esse o caso, daremos placebo e a faremos acreditar que está tomando realmente remédio além de acompanhamento psicológico. Isso funciona em quase cem por cento dos casos. Mas só saberemos ao certo amanhã após o exame. - Terminando de falar soltou um arremedo de sorriso pela primeira vez. Como se quisesse consolar o pobre marido. Mesmo jovem como era sabia como era sofrida a vida de parceiros de doentes, ainda mais de uma doença que não aparece. Assim que o viu chorando ao lado da cama de sua esposa jurara que faria tudo que estivesse ao seu alcance para curá-la. E Deus sabia que esse juramento ele iria cumprir. – O senhor poderá falar com ela por poucos minutos, mas se ela reclamar de dores a sedaremos imediatamente, está entendendo? – Falou num tom ríspido apesar do sorriso no rosto.
Luís não teve animo para responder, conseguiu esboçar um sim com a cabeça, quase que automático. – Muito abrigado, doutor, salve a minha esposa! – O final da frase saiu sem querer, havia compreendido o que o médico dissera, resumindo, ninguém sabia o que Luisa tinha, sendo assim pedir, implorar, que a salvassem o fizera parecer patético. Esse sentimento de inferioridade passou logo. Apertou a mão do médico que começara a falar amenidades, saiu da sala e caminhou pelos corredores até o quarto da esposa.
Enquanto andava imagens vívidas da vida a dois passavam em frente aos seus olhos. Desde que se conheceram no colégio não se largaram mais. Luís e Luísa. No começo nenhum dos dois queria assumir que estava interessado em um relacionamento. Até entre eles era piada terem o mesmo nome. Depois foram se acostumando e com isso todos os amigos se acostumaram também. Não estranhavam mais. Ambos queriam fazer jornalismo e ambos passaram no vestibular no mesmo ano. A única grande diferença entre os dois vinha das origens familiares, a família de Luísa era rica, segundo sua mãe estavam no país a mais de quatrocentos anos, seu pai era engenheiro e por conhecer gente importante tinha a empresa colocada em todas as grandes obras do governo, por outro lado Luis não tivera toda essa sorte. Sua família não era pobre, longe disso, tinham casa própria, duas, uma na praia, carro e telefone numa época que este tinha o mesmo preço de um automóvel. Mas tudo era inútil. Para os pais de Luisa ele sempre seria um pobretão. Mesmo quando ela desistiu da faculdade e ele continuou, e se formou. E mesmo depois de conseguir um emprego em uma famosa revista o desdém permaneceu o mesmo e, mesmo agora, quase trinta anos depois de se conhecerem, os pais de Luisa não faziam questão de manter contato mais intimo, só aquele contato civilizado que a sociedade os impõe. Mas para Luis eles poderiam ir para o inferno. Tudo o que importava agora era a saúde de sua mulher. Aliás, pensou sorrindo, Luisa sempre viera em primeiro plano.
Assim que chegou à porta do quarto deu um suspiro. No fundo temia o que encontraria, fazia uns três dias que não a via e esperava que nesse meio tempo ela não tivesse emagrecido muito. Respirou fundo, tomou coragem e abriu a porta. O quarto estava claro e mesmo com as janelas abertas para arejar ainda dava pra sentir aquele cheiro inconfundível de hospital. O quarto era amplo (e muito caro), precisou dar uns quatro passos para chegar à cama. E só então prestou atenção na esposa. Magra e pálida, tinha sido assim desde que as dores começaram. Parou de comer, não conseguia mais dormir e quando os analgésicos se mostraram ineficazes procuraram um médico. Após duas semanas de sofrimento resolveram a manter sedada. Só assim ela conseguiria suportar as dores.
Sentou bem devagar na cama, como que para não acorda-la.
Pegando na mão de Luisa de forma delicada falou num tom bem baixo: “Amor... Sou eu...” – Sentiu os olhos marejando. Então continuou. “Você pode estar dormindo, mas saiba que eu sempre te amei, desde a primeira vez que te vi.” – Apertava as mãos cada vez mais. “Eu sempre te fui fiel... Você é tudo pra mim e espero te ver logo.”. Desistiu de continuar, talvez tenham carregado demais nos anestésicos e ela não possa acordar - pensou. Os pensamentos vinham e iam. Por fim deu um respeitoso beijo na testa e resolveu ir embora. Saiu do quarto olhando para ela uma última vez.

Chegando em casa a primeira coisa que Luís fez foi ir de encontro a garrafa de whiski. Sentou no sofá e fechou os olhos, bebendo tudo bem lentamente. Já sonolento começou a lembrar da viagem. Das praias e das festas do hotel. Lembrou da camareira do hotel que impediu que fosse despedida e lhe jurou ajudá-lo no que fosse necessário. Da noite em que esta mesma camareira lhe levou na casa de Papa Camus e da estranha cerimônia que se seguiu. Do sangue do bode e das galinhas, do terrível cheiro que exalavam certas bebidas... Num Sobressalto acordou suado... “Meu Deus!” – Exclamou.
Rapidamente correu para o quarto. Quase que no automático se dirigiu ao guarda-roupa, abriu a porta do meio e puxou a última gaveta de baixo. De dentro tirou uma caixa de madeira. Pegou a chave que trazia sempre consigo numa corrente pequena e abriu a caixa...
- Eu sempre te fui fiel, amor... – sussurrou pra si. De repente sua feição mudou, mesmo sem ter conhecimento disso, e continuou, desta vez mais alto - ... Mas você não, piranha...
Puxou de dentro da caixa diversas fotos, em comum Luísa, em todas. Com diversos homens, alguns ele conhecia, outros não. Todos amantes dela. Puxou também uma boneca feita de pano velho, esta boneca ele fizera ainda no Haiti, do jeito que Papa lhe ensinara. Pegou outro alfinete e espetou na cabeça da boneca (contando agora com oito alfinetes ao todo). – Espero que esteja doendo amor. Do jeito que doeu em mim cada caso seu.
Ainda rindo pegou outra boneca. – Dona Jussara, seu genro tem um presente pra você... Olhe que boneca linda, vou colar um tufo de cabelo seu pra homenageá-la... Não vai ficar linda? Hehehe. Esse riso já não era dele. De repente pensou no que aconteceria se jogasse a boneca de sua sogra no fogo. Será que chamuscaria o corpo? Decidiu acabar de brincar com Luísa. Pegou a sua boneca e arrancou o pescoço. – Adeus amor... Falou novamente baixo. Começou, então a guardar as coisas.
Após alguns minutos o telefone começou a tocar. Deveria ser do hospital. Essa semana seria muito atribulada. Tratar de enterro costuma ser muito chato. Mas tudo bem, estava ansioso para estrear a boneca de sua sogra e uma semana passa rápido. Aquela megera ia pagar por cada
humilhação e comentário maldoso feito. Foi atender ao telefone – Dona Jussara? Vamos brincar de boneca? Após dizer isso atendeu ao telefone. Realmente era do hospital.


FIM

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