21 de março de 2007

MUITO OBRIGADO - CONTO


MUITO OBRIGADO


Fazia horas que aquelas duas figuras estavam no bar esperando pelo início do trabalho. Dico e Zitão eram o que poderíamos chamar de “colegas de profissão”, haviam se conhecido no presídio onde passaram uns tempos, ambos pelo mesmo motivo, latrocínio. Como saíram pela mesma época resolveram juntar forças e começaram a praticar delitos juntos. Não eram o que poderíamos chamar de amigos, mas apesar das diferenças, se davam bem. Dico era mais calmo, havia matado um homem, era verdade, mas havia sido em legitima defesa, “como um cara vai dar uma de machão com alguém segurando uma arma?”, era a pergunta que sempre ponteava seus relatos do motivo de sua prisão. Lógico que ele não explicava que o “machão” atacou depois dele falar o que iria fazer com a sua esposa. Zitão era mais esquentado, nas partilhas do resultado dos roubos era dele a palavra final, ele havia matado 4 pessoas. 4 para a justiça, mas Zitão perdera as contas após o oitavo, o primeiro havia sido aos 13 anos. O homem tinha tido o azar de acordar na hora errada, e zitão com medo disparou. O homem morreu na hora, tiro de perto, bem no rosto, Zitão vomitou o sanduba de mortadela que havia comido mais cedo e chorou um pouco. Desse a justiça não sabia. No primeiro dia após sua primeira morte ficou angustiado, mas as coisas que comprou com o que roubou e o poder que sentiu por ter dado cabo da vida de alguém fizeram essa angustia passar logo. Então Zitão aos 13 anos começou sua carreira.

Esse golpe havia sido planejado há duas semanas. Era uma família bem comum, papai, mamãe e filhinho, ou filhinha, não dava pra saber ao certo, era de colo e nessa idade as roupas dos bebes são todas iguais. O que chamou a atenção foi o carro, importado e do ano, devia ter custado mais de 100, a casa era grande pra caramba e aparecia uma mulher vez por outra com um carro também importado, mas esse com motorista. Ou seja, essa família valeria, por baixo, mais de um milhão. As informações eram seguras, haviam custado um churrasco na casa do vigia da rua, um homem que depois de umas pingas havia entregado todo o serviço. Tudo muito simples. Uma vez por semana, sempre aos sábados, a família ia para uma galeria no centro da cidade, então, na saída, tomariam o carro rapidamente e levariam o homem. Como a esposa veria o marido ser levado o pagamento sairia mais rápido (supunham) e como não tinham a menor intenção de devolver o homem, o trabalho seria perfeito, sem cativeiro nem nada. Só o local pra pegar a grana e sumir por esse mundo. Pediriam uns 5 milhões o que lhes renderiam uns 2 no final, um milhão pra cada. Daria pra fazer bastante coisa.
Os dois estavam pensando justamente nisso quando o carro que eles queriam estava saindo do estacionamento da galeria. Haviam estado lá nas últimas três semanas e sabiam que a partir deste momento tinham um minuto no máximo para chegar ao carro. E foi o que fizeram.
A abordagem foi como planejada. Cada um foi por um lado. Zitão arrancou a mulher de dentro do carro com criança e tudo. Gritando palavras desconexas e xingando muito. Deu uma tapa na cara da mulher para ela saber que estavam falando sério e passou para o banco de trás deixando-a sentada na calçada chorando e gritando como seu bebê. Dico, por ser maior, ficou de intimidar o homem. “Abra a porta pleibói, senão te dou um tiro nos cornos e mato a sua vagabunda... Vai mano... Abre logo essa porra!” - Gritava olhando para o homem com cara de mau. O Homem chegou a falar alguma coisa, mas Dico estava nervoso e teve que o calar com uma coronhada no rosto. Enquanto o homem segurava seu rosto, devido à dor, ele desistiu de esperar, correu pela frente do carro e entrou pela outra porta, sentando-se ao lado do motorista e fechando a porta com força. Olhando pela janela, olhou para a esposa do homem. “Ae piranha, vamu levar o corno do teu marido, fica pianinho e não fala nada prus homi. O negócio é grana, ouviu? Grana...”- Depois de falar ainda apontou a arma pro colo da mulher, onde se encontrava agora o bebê chorando e fez o movimento de atirar. A mulher não esboçava mais nenhuma reação, só olhava sério para o carro, como se não enxergasse, estava em choque.
“Vamulá, otário. Dirige calado que eu vou te mostranu o caminho.” – Enquanto falava ia cutucando as costelas do homem com o cano da arma, “ Tu vai direto para o bairro de São Miguel, intendeu otário?”. O homem fez um sinal de sim com a cabeça e começou a acelerar o carro, sem falar nada. Só então Dico relaxou.
“Eu num falei que ia dar certo, mano?” – Falava Zitão já se esparramando no banco de trás. “Agora é só chegar na favela e ligar de um orelhão pra babaca, o importante é não dá chance da muié dá uns plá prus homi.”- Começou a gargalhar, já pensando no que faria com o dinheiro do resgate.
“Vocês acreditam em Deus?”- O homem de repente falou, a primeira coisa que ele falava em 5 minutos, desde que o carro havia deixado a mulher estendida no chão. “Que papo feio é esse, Mane? Cala a boca e dirige...” - Completou Zitão com um tapa na nuca do homem. Deu resultado, o homem não falou mais, pelo menos não com eles.
“Pai nosso que estais no céu...” - O homen começou a orar, “...santificado seja...”. “Num mandei você calar a boca?”- Reagiu Zitão ameaçando bater nele novamente. O homem não parou.
“... teu nome. Venha a nós...” - Enquanto orava a velocidade do carro ia aumentando, já estava com mais de 150 por hora, mas isso eles só perceberam tarde demais. “... o vosso reino, seja feita a...”, 170, 180, “... assim na Terra quanto no céu...”, 190.
“Diminui a velocidade, Mane, quer nos matá...”, foi a última coisa que Dico disse e “... tenha misericórdia de mim e perdoe os meus pecados. Amém” foi a última que ele escutou.
O carro bateu a mais de 200 por hora de frente com um poste, não sobrou nada, nem ninguém.

Maurício, era esse o nome do homem, era uma pessoa muito querida, seu enterro estava apinhado de gente. O que poucas pessoas sabiam era que Maurício era um homem desenganado. Não por motivo de doença, mas desenganado pela vida. A empresa na qual era sócio estava indo a falência. E estava devendo muito. A vergonha pelo fracasso e o medo de encaram o filho recém nascido como perdedor o estavam consumindo. Com sua morte no trágico acidente ele finalmente pode descansar afinal. Já havia tentado se matar antes, mas o que o impedia era o seguro, o mesmo seguro que agora haveria de suprir sua família com um certo conforto que ele não poderia mais oferecer. E ele sabia que nenhuma seguradora pagaria uma apólice para um suicida. Se foi suicídio ou não ninguém jamais saberia. Para todos ele morrera enquanto era seqüestrado por dois marginais perigosos que na ânsia de fugir o fizeram correr demais. De todas as pessoas no enterro apenas Márcia, sua esposa, tinha suas dúvidas. Olhando para o menino em seus braços ela se lembrava das palavras ditas naquela manhã durante o café: “Amor, eu morreria por você e pelo Gabriel, se isso fosse necessário...” – Será que ele achou necessário? Essa pergunta ela jamais conseguiria responder...


FIM

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