21 de março de 2007

APÊNDICES - CONTO


APÊNDICES


Quando acordou tentou lembrar de onde estava. A memória veio surgindo aos poucos. Casa, transporte, hospital e parto, tudo nessa ordem. Finalmente após alguns meses seu filho havia nascido. Era verdade que deu pouca (ou nenhuma) atenção aos conselhos das outras mulheres da colônia. Não procurou nenhum médico para o pré-natal e se descuidou da dieta, de modo que prometera pra si mesma que após a operação perderia os 10 quilos ganhos. Seu filho havia nascido bem, pelo menos chorara, disto ela tinha certeza. Tentou se mover, mas não conseguiu. O corpo estava pesado, bem, a culpa era dela mesma que havia optado por cesariana, esse peso todo deveria ser efeito dos anestésicos que lhe haviam dado antes da cirurgia. De repente o sono veio como uma onda, ela bocejou e os olhos começaram a pesar, seu último pensamento antes de dormir foi a vontade louca de ver seu filho. Ela não sonhou.
Acordou novamente, desta vez mais consciente. Já sabia onde estava e a sonolência havia passado por completo. Seu corpo a obedecia mais facilmente e tentou levantar da cama. Fora uma leve tontura estava tudo normal. Ouviu o relógio, 10 horas de um dia qualquer. Havia entrado no hospital na terça-feira, calculou ter dormido um dia inteiro, deveria ser quinta-feira. Apertou o alarme para chamar a enfermeira. A tontura aumentou um pouco, sentou na cama e esperou.
Um, dois, três minutos. Apertou novamente. Alguns segundos depois a enfermeira entrou. “Já acordada?”, perguntou num tom seco. “Você deve permanecer deitada, mesmo uma cesariana não deixa de ser uma cirurgia”, continuou no mesmo tom. Sentiu a mão da enfermeira em seu pulso.
- Quando vou ver meu filho? Por que ele não está aqui comigo? – Perguntou apesar dela não esboçar nenhum sinal de quem queria responder.
Após alguns segundos veio a resposta: “Senhora, o médico virá em poucos instantes atendê-la, deite-se e tenha um pouco de paciência, sim?”, o tom havia melhorado. Mesmo ansiosa não estava com vontade de dialogar, desde sempre detestara tomar remédio e achava que era por isso que estava tão cansada. Falta de costume.
Começou a pensar no seu futuro filho, de como ele seria. Como mais nova de três irmãs e, ainda por cima, temporã seu filho seria quase um primo para os bisnetos de seus pais, chegou a sorrir com a idéia. Uma das vantagens de morar no subterrâneo era a longevidade, o ar era muito mais puro do que na superfície, pelo menos era o que se dizia. Nas aulas de história era contada de como foi a passagem de cima para baixo. De como o planeta havia ficado quente demais, de como as pessoas começaram a morrer intoxicadas só por respirarem onde não se podia. De como começaram a se construir condomínios inteiros embaixo da terra, condomínios que viraram bairros e depois cidades e, finalmente, de como a superpopulação fez com que se construí-se cada vez mais pra baixo. Isso havia sido há muito tempo. Hoje toda a humanidade estava adaptada, os geradores de oxigênio proviam toda a humanidade de ar puro e totalmente reciclado, as plantações hidropônicas forneciam a comida, a vida era boa, se cada pessoa fizesse a sua parte. Havia ouvido em algum lugar que nos tempos remotos as pessoas passavam fome e tinham que trabalhar para os outros para comer e se vestir. Que horror. Hoje fazíamos o que gostávamos, tudo pelo bem da colônia. Era verdade que só se podia ter dois filhos por casal, mais isso podia ser moeda de troca com casais que queriam mais, ou menos, filhos. Seus pais haviam feito isso, um acordo com um jovem casal, compraram o direito de ter um filho além da cota no lugar deles. Essa história era contada em todos os jantares de família, seu pai dizia que havia feito isso para agradar a sua mãe e sua mãe dizia que seu pai ainda queria ter a chance de ter um menino. Ela achava que nunca saberia a verdade. Seus pensamentos foram repentinamente interrompidos quando ela sentiu a entrada do médico no quarto.
“Como está se sentindo, Dona Vera?”, Perguntou num tom esquisito que ela não conseguiu identificar. “Tenho algumas perguntas a fazer, seu registro está meio que incompleto, a senhora está em condições de responder?”
Ela começou a se sentar na cama perguntando: “Meu filho Doutor, cadê ele?”, respirou fundo e continuou, “Eu sei que foi uma cesariana, mas eu sei também que ele está bem e que deveria estar aqui comigo...”
O médico não deixou que ela continuasse, segurou no seu pulso para sentir a pressão e falou num tom de voz mais sério que o anterior.
“Dona Vera, eu sei que a senhora trabalha na fábrica de reciclagem e que tem pouco conhecimento acadêmico. Vou tentar ser o menos didático possível...”, quando o médico começou a falar ela começou a sentir receio pelo seu filho, “ Doutor, cadê meu filho?”, ela começara a gritar, mesmo sem perceber.
“Calma. Sua filha, é uma menina, nasceu bem. Eu só estou aqui para falar sobre algumas complicações do nascimento dela.”, ela começou a esboçar vontade de falar quando o médico a cortou antes que começasse. “Deixe-me acabar, depois que a senhora me ouvir poderá fazer o que quiser.”
O médico falou por um tempo que lhe pareceu uma eternidade, palavras fortes foram ditas e ela fez o possível para prestar atenção e tentar entender. Por fim sua mente não agüentou e ela desmaiou.

Dois dias depois lá estava Vera em frente da incubadora de sua filha, como o médico disse havia nascido menina, infelizmente não uma menina normal. O médico falou sobre incapacidade pulmonar e auditiva. Ela deveria ficar na incubadora até que conseguisse respirar o oxigênio dos dutos, se é que ela alguma vez conseguisse. No final da conversa foi-lhe dito que o jeito mais fácil para todos, inclusive para Vera 6 (esse seria o nome que lhe seria dado), seria que a incubadora fosse desligada e que a pequenina morresse de forma indolor. Ela nunca seria normal, mesmo que acabasse conseguindo respirar sozinha, suas orelhas eram pequenas demais, muito menores que o normal. Seria para sempre motivo de piadas para os outros. Como uma áudio novela as imagens fluíam em sua mente
“Ela tem a aparência de um macaco, um antigo animal terrestre. Há milênios parecíamos com eles, nossos antepassados tiveram que usar tecnologia genética para evoluirmos rápido, cada vez mais e mais, cruzamento seletivo e muitos outros recursos. Nunca conseguiríamos sobreviver sob a terra se não tivesse sido desse jeito. A senhora sabia que só nos juntamos com quem quisermos há apenas 3 mil anos? Durante muito séculos foram escolhidos os parceiros certos para que as crianças nascessem cada vez mais adaptadas... Mas isso é história. Sua filha sofreu um processo de involução, acho que podemos chamar assim. É muito raro. Como eu já falei, nosso desenvolvimento não foi muito natural, e as vezes acontece isso, algumas crianças nascem macacos...” Macacos... Antes desse momento nunca havia pensado em como a Terra deveria ter sido na superfície. Que animais morariam lá em cima, quando isso ainda era possível...?
“Tecnicamente sua filha estaria adaptada a morar em um lugar que tivesse um tipo de oxigênio diferente Somos adaptados a usar pouco e ela precisaria de muito. Ela viveria menos que nós, talvez uns 70 anos. Sua audição é pouco desenvolvida. Seus olhos enxergam num espectro diferente do nosso, aqui ela não conseguiria enxergar nada. Enfim... Como disse, às vezes acontece e nesses casos as mulheres têm o bom senso de dar fim a esse arremedo de vida.” De repente percebeu que estava com nojo da menina. Meu Deus, ela era sua filha e ela estava com nojo...
“E a senhora quando pegar a menina perceberá que o corpo dela é anatomicamente diferente do nosso, não se assuste quando senti-la. Só tenha em mente que no caso dela a morte é uma benção...” Essa foi a parte que havia doido mais.
E aqui estavam elas, uma mãe desorientada e uma filha que ninguém queria. Tomou coragem e decidiu abrir a incubadora. A menina começou a tossir e ela não agüentou. Abraçou a filha e o nojo foi substituído por carinho. Tristemente estava presenciando a morte de uma coisa há muito esperada. Culpou-se por não ter feito o pré-natal, isso talvez tivesse evitado esse momento. Abraçou a filha carinhosamente e começou a senti-la. “Como o médico havia chamado mesmo?”, pensou consigo, “apêndices, dissera ele, isso mesmo apêndices.” Havia isso no meio do rosto, o nome era nariz e era usado para filtrar o ar, ou algo parecido. Sentiu os olhos da criança, grandes demais, para poder enxergar com muita luz, algo que aqui embaixo não havia. Orelhas pequenas, de formato achatado, diferente do de forma conchal que nos ajudavam a aproveitar melhor o som. Corpo liso, sem pelos, “como ela sobreviveria sem os pelos e com orelhas tão pequenas? Suas orelhas nunca passariam de uns 10, talvez 20 centímetros. Muito pequena...”. Os cinco dedos em cada membro, um a mais do que o necessário, foi outra coisa que lhe chamou atenção. Estava pensando nisso quando percebeu que a menina não respirava mais. A abraçou por mais um minuto e finalmente a colocou de volta na incubadora. “Pobre criança!”, pensou enquanto enxugava as lágrimas. “Nunca teria uma chance...”
Agora tentaria esquecer Vera 6. Havia dito para seu marido que a filha havia morrido no parto, esse segredo ela guardaria só pra ela. Ninguém precisaria saber o que foi que nasceu dela. Ela havia amado aquela criatura por alguns instantes, mas trataria de esquecê-la. Ninguém jamais precisaria saber que ela havia dado a luz a um monstro. E agora torcia para que a próxima tentativa desse certo e que nascesse uma criança normal.


FIM